segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

Memória do Holocausto (III)

 


"Estou sentada em cima da minha mochila, no centro de um vagão cheio, e preciso de te ajudar, meu Deus. (...)

Estou sentada em cima da minha mochila, o vagão trepida, as crianças dormem e os velhos velam,  e eu vou no transporte e penso que tenho de te ajudar, meu Deus. Tu não tens forças para nos socorrer, por isso eu preciso de vir em teu socorro. Porque tu estás reduzido a tão pouco, e não podes valer a todos, então eu preciso de te dar as minhas forças. Precisas de ajuda, meu Deus, porque estás ferido e exangue. Precisas que eu trate de ti, que te vele, que te dê um pouco do calor que guardo em mim, dentro das camisolas de lã. Que eu guarde este calor por ti, dentro de mim.

Eu queria ser o coração pensante dos barracões, meu Deus, porque todos os outros estavam tão ocupados, sempre mais atarefados do que eu. Porque os outros tinham filhos pequenos e os pais a morrerem, e estavam terrivelmente assustados. Mas eu não tinha medo, podia pensar por eles. Podia levar os pensamentos deles até ti, meu Deus, como um correio que não abrisse as cartas para as censurar. Queria ser o coração pensante, quando os outros não tinham tempo para pensar, à procura de comida, agasalho e notícias. E queria ajudar-te a pensar com eles, pensar os pensamentos deles.

Eu ajoelhava em frente ao urzal, meu Deus, o urzal atrás do arame farpado. E tu estavas ali, pobre, atrás do arame farpado. Os raios de sol nas urzes, na água gelada, atrás do arame farpado.
Deixa-me agora ser o coração do vagão, meu Deus. 
Estão demasiado cansados, mal conseguem falar. Mas se eu levar o meu pensamento pela noite fora, toda a viagem de comboio, até ao fim, é como se guardasse um pouco de calor, intacto, por nós todos. Deixa-me guardar o resto do pensamento. Mesmo  a tremer, mesmo a cair de cansaço ainda hei-de conseguir um pouco de força para te amparar. (...)

Eu aceito tudo , meu Deus. Continuo a ajoelhar, e ajoelharei no vagão e no campo, como ajoelhei em frente ao urzal. Se eu não te ajudar, meu Deus, quem te levará até à morada da morte?
Espreito pela frincha, o ar entra, tudo está morto. Montanhas e florestas.
Tenho tudo dentro de mim, mesmo quando é tão difícil.

Partimos de Westerbork há dois dias. Como se a viagem durasse anos de vida. Pode-se envelhecer vidas inteiras num vagão, durante uma noite. Todos nós, mesmo as crianças, somos agora muito velhos. Com mais velhice do que cabe numa vida. Amanhã chegaremos ao campos, e ninguém sabe o que acontecerá. Correm rumores horríveis. mas seja o que for que nos espera, meu Deus, eu aceito. Mesmo na morada da morte te ajudarei.

Olho pela frincha. Lá em cima, a Ursa Maior, clara, nítida, e fria. Que nos acompanha desde a partida. Por que é que as estrelas andam quando eu ando, perguntou-me uma criança em Westerbork, e param quando eu paro?
Uma pequena força dentro de mim. 

As estrelas brilham sobre a neve. Uma claridade branca começa atrás dos montes, o dia nasce do lado para onde o transporte avança. Vejo um caminho, uma casa. Um regato gelado. Luzes ao longe, uma cidade. Uma placa a indicar a direcção. 
Consigo ler a placa: "Leipzig".
E a neve recomeça a cair.
Uma pequena força, meu Deus, dentro de mim.

Pedro Eiras. (2014). "Etty Hillesum", in Bach. Porto: Assírio& Alvim
Imagem - Capa do livro que junta os Diários de Etty Hillesum (1941-43) e que como Anne Frank vivia em Amesterdão; Copyright - persephonebooks

Memória do Holocausto (II) - Cidadania e História

"Nunca nenhum de nós se tinha encontrado numa situação tão perigosa como a da noite passada. Deus protegeu-nos. Imagina a Policia a remexer na estante da nossa porta giratória, iluminada pela luz acesa, sem dar connosco! Em caso de invasão, com bombardeamentos e tudo, cada um de nós pode responder por si próprio. Neste caso, porém, não se tratava só de nós, mas também dos nossos bondosos protectores. 

Estamos salvos. Não nos abandones! É apenas isto que podemos suplicar.Este acontecimento trouxe consigo algumas modificações. O sr. Dussel já não trabalha à noite no escritório do Kraler mas sim no quarto de banho. Às oito e meia e às nove e meia o Peter faz a ronda pela casa. Já não pode abrir a janela durante a noite. Depois das nove e meia não podemos utilizar o autoclismo do W. C. Hoje à noite vem um carpinteiro reforçar as portas do armazém. Há discussões a tal respeito, há quem pense que não se devia mandar fazer isso.

O Kraler censurou a nossa imprudência e também o Henk disse que não devíamos em tais casos descer ao andar de baixo. Fizeram-nos ver bem que somos «mergulhados», judeus enclausurados, presos num sitio, sem direitos, mas carregados de milhares de deveres. Nós, judeus, não devemos deixar-nos arrastar pelos sentimentos, temos de ser corajosos e fortes e aceitar o nosso destino sem queixas, temos de cumprir tudo quanto possível e ter confiança em Deus. Há-de chegar o dia em que esta guerra medonha acabará, há-de chegar o dia em que também nós voltaremos a ser gente como os outros e não apenas judeus.

Quem foi que nos impôs este destino? quem decidiu excluir deste modo os judeus do convívio dos outros povos? quem nos fez sofrer tanto até agora? Foi Deus que nos trouxe o sofrimento e será Deus que nos libertará Se apesar de tudo isto que suportamos, ainda sobreviverem judeus, estes servirão a todos os condenados como exemplo. Quem sabe, talvez venha ainda o dia em que o Mundo se aperceba do bem através da nossa fé, e talvez seja por isso que temos de sofrer tanto. Nunca poderemos ser só holandeses, ingleses ou súbditos de qualquer outro pais. Seremos sempre, além disso, judeus. E queremos sê-lo.

Não percamos a coragem. Temos de ter consciência da nossa missão. Não nos queixemos, que o dia da nossa salvação há-de chegar. Nunca Deus abandonou o nosso povo. Através de todos os séculos os judeus sobreviveram. Através de todos os séculos houve sempre judeus a sofrer, mas através de todos os séculos se mantiveram fortes. Os fracos desaparecem mas os fortes sobrevivem e não morrerão!

Naquela noite pensei que ia morrer. Esperava pela Policia, estava preparada como os soldados no campo de batalha, prestes a sacrificar-me pela pátria. Agora que estou salva, o meu desejo é naturalizar-me holandesa depois da guerra. E Gosto dos holandeses, gosto desta terra e da sua língua. É aqui que gostava de trabalhar. E se for preciso escrever à própria rainha, não hei-de desistir enquanto não conseguir este meu fim.

Sinto-me cada vez mais independente dos meus pais. Embora seja muito nova ainda, sei, no entanto, que tenho mais coragem de viver e um sentido de justiça mais apurado, mais seguro do que a mãe. Sei o que quero, tenho uma finalidade, uma opinião, tenho fé e amor. Deixem-me ser eu mesma e estarei satisfeita. Tenho consciência de ser mulher, uma mulher com força interior e com muita coragem.

Se Deus me deixar viver, hei-de ir mais longe de que a mãe. Não quero ficar insignificante. quero conquistar o meu lugar no Mundo e trabalhar para a Humanidade.
O que sei é que a coragem e a alegria são os factores mais importantes na vida!"

(Excertos de O Diário de Anne Frank, um dos muitos testemunhos sobre a representação no quotidiano do Holocausto e do que foi vivido pelos judeus na Alemanha nazi).

Ebook - Desconhecido nesta morada

Memória do Holocausto (I) - Cidadania e História

Os livros dão-nos a memória do que representou em todos os momentos da existência, o Nazismo e a sua ideologia de extermínio a milhões de pessoas. Do trabalho, à vida pública, às relações sociais, à possibilidade de viver em família, aos gestos mais particulares e íntimos de uma pessoa houve repercussões que o gravaram como a mais baixa forma de existência da Humanidade. Deixamos alguns dos possíveis livros que nos dão essa proximidade do que foi o desespero de milhões de pessoas. Alguns deles estão em mostra na Biblioteca na exposição feita para homenagear uma memória e a mais inexplicável história humana.

 


 
 

sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

Top - leitores - 1.º período

 

Os Leitores que integram o Top5 com mais requisições durante o 1.º período. A todos eles os nossos parabéns!

  • Franco Rivero
  • Christian Ferreira Pereira
  • Danny Pereira da Graça
  • Matilde Fernandes Azevedo

Top livros - 1.º período

 

  

                    Os livros mais requisitados durante o 1.º Período (leitura domiciliária)

terça-feira, 21 de janeiro de 2025

Eugénio de Andrade


"Escuta, escuta: tenho ainda

uma coisa a dizer.
Não é importante, eu sei, não vai
salvar o mundo, não mudará
a vida de ninguém – mas quem
é hoje capaz de salvar o mundo
ou apenas mudar o sentido
da vida de alguém?
Escuta-me, não te demoro.
É coisa pouca, como a chuvinha
que vem vindo devagar.
São três, quatro palavras, pouco mais.
Palavras que te quero confiar,
para que não se extinga o seu lume,
o seu lume breve.
Palavras que muito amei,
que talvez ame ainda.
Elas são a casa, o sal da língua."

Eugénio de Andrade, O Sal da Língua. Fundação Eugénio de Andrade

quinta-feira, 16 de janeiro de 2025

Livros do mês - janeiro

"Recomeça…
Se puderes, Sem angústia e sem pressa.  
E os passos que deres,  
Nesse caminho duro 
Do futuro, 
Dá-os em liberdade.  
Enquanto não alcances 
Não descanses. 
De nenhum fruto queiras só metade. 
E, nunca saciado,  
Vai colhendo 
Ilusões sucessivas no pomar
E vendo
Acordado,
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças."

Miguel Torga, Diário XIII.


Miguel Torga - O território como identidade


De seu nome Adolfo Correia da Rocha e com a profissão de médico é um dos mais importantes escritores do século XX. Escreveu sob o pseudónimo de Miguel Torga. Miguel, em homenagem a duas figuras da cultura universal, Cervantes e Unamuno. Torga, em homenagem à sua natureza transmontana. Natural de Sabrosa, distrito de Vila Real, construiu uma obra vasta, variada que abarcou, a poesia, o romance, o conto e as memórias

Fundou várias revistas literárias e publicou, desde 1928, uma extensa obra, podendo-se destacar Os Bichos, Novos Contos da Montanha e os Diários. Recebeu diferentes prémios entre 1969 e 1981 (Diário de Notícias, Poesia de Bruxelas, Prémio Montaigne). A sua escrita apresenta o encanto silvestre e a originalidade humana desse reino único, muito especial, a que ele deu o nome de maravilhoso. A sua obra e a sua figura são a morada desse tempo quase eterno onde a montanha faz nascer a liberdade e a beleza. É um autor que nos recorda o valor da paisagem e de como ela é uma construção humana. 

Torga é um exemplo da importância de um território e de uma memória como suportes de uma cidadania formalizada nos valores culturais de uma comunidade. As palavras de Torga são um combate pela liberdade, naquilo que ela tem de valor moral, de consistência civilizacional. Lutou pela liberdade, pela possibilidade de construir uma sociedade mais livre e tolerante. Sentiu essa prisão num País que não evoluía e  que não se permite a si mesmo ser livre e autêntico. 

Miguel Torga foi alguém que recriou na literatura esses espaços de liberdade e beleza perenes que são os montes ouvidos pelo vento, ou os rios onde correm as transparências telúricas dos seixos e de uma vida selvagem quase pura, o seu reino do maravilhoso. Nele ainda se ouve, apesar do avanço dos tecnocratas, o silêncio criado nas fragas, onde o som mais encantado das cotovias chega dos castanheiros milenares, onde tudo se apresenta frontal e belo. O reino encantado das flores silvestres, onde torgas luxuriantes lutam entre as pedras nessa resistência de sonho, por onde corre o vento e o silêncio.

A biografia de Torga é construída das muitas escolhas que fez na vida, perante esse testemunho vivo da terra e do maravilhoso que ele descobriu nela. Os seus poemas são o grito dessa liberdade e a angústia de uma vida que se queria livre, grande e incomensurável como o tempo. A sua passagem pelo Brasil deu-lhe a conhecer essa extensão informal de Portugal e permitiu-lhe realizar os seus estudos. Chega a Coimbra, em 1928, para estudar Medicina, iniciando nesse ano a publicação dos primeiros poemas. 

Em 1929 está a trabalhar na Revista Presença, onde fica pouco tempo, pois a sua voz era uma voz de liberdade, de compromisso com a dureza da vida e com a beleza que encontrava nos testemunhos da memória. Em 1933, escolhe exercer Medicina em Trás-os-Montes. Passou a dedicar-se à dupla missão de ser médico e de ser escritor. Foi preso, durante o regime político do Estado Novo. Nunca optou pelo caminho do exílio, ficando porque se considerava a voz de uma identidade, da Terra, de uma identidade cultural, de um património de pertença. Escreveu sobre o seu País esquecido, Portugal, sobre a suas tradições e particularidades. Imaginou a criação de um mundo telúrico e foi um poeta de grande alcance humanista. Torga é um exemplo de uma figura de grande valor cultural e humanista, e o facto de ter sido obliterado à vida de uma comunidade evidencia um País afastado de si próprio. Torga sentiu tudo isto e na fase final sentia-se um ser fora do real que habitava.

Torga criou na literatura um reino maravilhoso, porque o descobriu, porque o soube ver nas fragas de xisto que se debruçam das arribas do Douro, nas plantas rasteiras que no cimo das serras resistem a todas as intempéries. Estas paisagens inspiraram-no na sua escrita. Torga foi essa montanha que não se move, que não cede às pequenas intrigas e vaidades, e que se afirma na beleza da palavra sempre pronta para fazer da liberdade a maior bravura. 

Torga morreu há pouco mais de vinte anos, despedindo-se de um País que reconheceu o valor da sua literatura, mas não lhe deu uma oportunidade de participar na sua construção. Torga sentiu esse desprezo de um País político pela mais elementar verdade, pela beleza das coisas simples, por esse território de gente sofrida, pobre e sem oportunidades, que lutava no cimo das encostas por uma vida mínima de possibilidades. 

A solidão deste escritor foi também uma forma de encontrar a revelação desse real tão belo, dessa força natural imensa. Torga era uma forma de consciência, um património humano, que assume atualmente um maior significado do que quando se despediu de nós. Torga sentiria, hoje, uma imensa tristeza pelas “praias tristes”, abandonadas da vontade, em que se tornou muito deste país.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

Difusão da Informação






Janeiro...

                                                             

                                                     " Janeiro é um mês, quase inteiro,
de frio, chuva, nevoeiro.
Mas há um sol em janeiro,
um sol discreto e fagueiro,
em raras manhãs de azul,
que sorri por entre o frio
e acende um pequeno braseiro
no coração mais sombrio."

João Pedro Mésseder, O livro dos meses 
Imagem, in http://www.jungeunpark.com/main.html

segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

Recomeçando...

 


Recomeçar pode ser uma nova forma de começar, ou dar outras cores ao que já se fez e ainda se imagina como uma possibilidade. Miguel Torga deu-lhe essa ideia de desafio para superar todas as dificuldades afirmando a nobreza do que cada um pode ser. Recomeçar como? Recomeçar com a imaginação, juntando ideias, inquietação, ou espanto pelo que pode deslumbrar, exprimir o que cada um deseja ser, a sua aprendizagem nas coisas. Recomeçar é no fundo afirmar, mais uma vez, de um modo diverso o pensamento que se apresenta capaz de exercer as diversas formas da cidadania. Recomeçar é sonhar outra vez com outras formas de expressão. Bom recomeço a todos...

Imagem, Nate Williams, in http://www.n8w.com/newweb/index.php