sexta-feira, 7 de março de 2025

Ler no feminino


As efemérides são sempre pobres formas de lembrar causas. São a possível lembrança de algo necessário ou marcante. Triangle Shirtwaist Company é a marca de uma luta das mulheres operárias do têxtil que em Nova Iorque nesse ano distante de 1910, ou das tecelãs de São Petesburgo que a 08 de Março de 1917 tentaram melhorar as suas condições de vida.

A data merecia que hoje compreendêssemos como estamos desatentos às formas de exploração dos seres humanos. E, nesse sentido a leitura e a escrita podem ser formas de compreender essa luta interior das mulheres por séculos de esquecimento. A luta pela liberdade, a existência que procura esse axioma hegeliano, o ser é “ter-se tornado, é ter feito tal qual se manifesta” vive desses universos particulares que foram os espaços íntimos da leitura. 

A recuperação desses momentos é uma forma de compreender uma luta de grande convicção, de ondas, onde muitos, sobretudo mulheres pereceram e a que nós escapamos. O livro e a leitura são o domínio do feminino, a escrita foi a sua teia de vida. Os homens sempre foram raros leitores. As cartas eram a prova de vida de uma escrita e de uma sobrevivência, onde corriam o amor, o medo, a idade, a morte e do que se alimentavam vida e esperança.

A linguagem é uma estima no feminino pelas palavras, por uma candura de imaginação, onde repousasse o conhecimento capaz de preencher os dias e mudá-los. A Inquisição foi uma fogueira alimentada por mulheres e livros. Os homens pela circunstância do poder, da mineralização das pedras tornadas palácios são agentes de uma palavra sedentária que pouco confia na beleza da palavra. Não imaginamos um homem a embrulhar no mercado um peixe com um resto de poemas desalinhados.

Os homens são agentes de palavras formais, as do Estado, as da ordem, as das normas. Os livros foram a grande companhia do universo feminino. Nessa sabedoria de tentarem revelar a vida foram com as palavras as formas de como rostos femininos perceberem melhor os poros da vida. A luta das mulheres, da leitura e dos livros foram essa oposição ao formalismo do inexpressivo que o poder económico, político e religioso sempre procurou estabelecer. É sobre essa imaginação de belo que a arte dá conta e que exprime de um outro modo uma luta antiga por algo elevado e essencial, a própria vida.

Elas...


“Elas fizeram greves de braços caídos. Elas brigaram em casa para ir ao sindicato e à junta. Elas gritaram à vizinha que era fascista. Elas souberam dizer salário igual e creches e cantinas. Elas vieram para a rua de encarnado. Elas foram pedir para lai uma estrada de alcatrão e canos de água. Elas gritaram muito. Elas encheram as ruas de cravos. 

Elas disseram à mãe e à sogra que isso era dantes. Elas trouxeram alento e sopa aos quartéis e à rua. Elas foram para as portas de armas com os filhos ao colo. Elas ouviram falar de uma grande mudança que ia entrar pelas casas. Elas choraram no cais agarradas aos filhos que vinham da guerra. Elas choraram de ver o pai a guerrear com o filho. Elas tiveram medo e foram e não foram.

Elas aprenderam a mexer nos livros de contas e nas alfaias das herdades abandonadas. Elas dobraram em quatro um papel que levava dentro uma cruzinha laboriosa. Elas sentaram-se a falar À roda de uma mesa a ver como podia ser sem os patrões. Elas levantaram o braço nas grandes assembleias. Elas costuraram bandeiras e bordaram a fio amarelo pequenas foices e martelos. Elas disseram à mãe, segure-me aqui nos cachopos, senhora, que agente vai de camioneta a Lisboa dizer-lhes como é. Elas vieram dos arrabaldes com o fogão à cabeça ocupar uma parte da casa fechada. 

Elas estenderam roupas a cantar, com as armas que temos na mão. Elas diziam tu às pessoas com estudos e aos outros homens. Elas iam e não sabiam para aonde, mas que iam. Elas acendem o lume. Elas cortam o pão e aquecem o café esfriado. São elas que acordam pela manhã as bestas, os homens e as crianças adormecidas.”

Maria Velho da Costa. (1976). Cravo. Lisboa: Moraes Editores.
Imagem: Copyright - Alfredo Cunha Official Fujifilm X-Photographer, Vila Verde, 2001